29.11.13

andrei












Por exemplo, esta cena. Uma cena de segundos e, no entanto, uma cena que dura o tempo de um poema longo no seu estado mais puro. Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky [1966], é mais do que uma obra-mestra. É o eterno retorno da busca da obra-mestra. Sei-a em toda a parte e, no entanto, ao lado de Andrei, tal como Andrei, procuro-a em toda a parte. É do toque do sino que ela acabará por se revelar. Aquele toque muda tudo. Tudo o que é invisível passa a ouvir-se. De súbito, não é a imagem, mas sim o som que muda tudo. Através dele, passamos a ver.

21.11.13

escrivaninha

Há quase vinte anos que não me sentava tantas horas seguidas nesta escrivaninha. Hoje percebi que fui muito mais útil durante os anos em que o meu irmão me dizia que uma pessoa sentada numa escrivaninha não serve para nada. Ironicamente, todos os planos que tracei sentada nesta escrivaninha nasceram com toda a vitalidade e utilidade do mundo, utilidade jamais exequível desde que dela decididamente me levantei, mas ao contrário de Lázaro, para tudo deixar morrer no caminho.

19.11.13

s/t

Existem páginas pessoais virtuais e existem páginas pessoais virtuais oficiais. Uma página oficial de uma pessoa é como a imagem decretada de uma pessoa. Nunca poderia ter uma página ou um diário oficiais, porque, das coisas às pessoas, das pessoas aos sentimentos, não suporto nada neste mundo que seja decretado. Nem a morte, contra a qual me revoltarei sempre, ainda que saiba que, por mais voltas que dê, me ganhará no xadrez.

17.11.13

onde não ter medo















Cheyenne: - Devemos escolher um momento da nossa vida, apenas um, onde não devemos ter medo.
Rachel: - Já escolheste o teu?
Cheyenne: - Já. Este momento.

[Enquanto os dois conversam, três jovens rapazes mergulham, calados e destemidos, na água inesgotável do rio. Ouve-se, vinda do fundo desta partícula de filme, a peça Spiegel im Spiegel, de Arvo Part. Um dos muitos momentos das fitas sempre enormes de Paolo Sorrentino.]

This Must Be the Place | Paolo Sorrentino |2001

15.11.13

não-lugares

Esta peça. A juntar à minha autobiografia. | Com o maior agradecimento ao David G. Santos por, entre tantas outras possibilidades e dificuldades, ser capaz de transformar nada em tudo.

13.11.13

a mãe

Leio, pela noite dentro, o livro A Mãe, de Maximo Gorki. Deixo-me chorar de vez em quando, porque me comovo sempre muito nos sonhos dos outros, no modo gigante como quantos pequenos Homens (e tão poucos, afinal, para a imensidão do mundo) souberam criar tanto e tão bem em torno de nada e para nada: porque o sonhador é o enorme criador de tudo afinal para nada, de tal modo o sonhador nasce para a orfandade total do mundo, de tal modo o sonhador nasce apenas sozinho para si mesmo, num mundo sem apoio dos Homens em geral e tão-pouco dos outros sonhadores em particular, cada qual órfão de tudo e, por isso, cada qual criador de nada e para nada. Cada qual a precisar, afinal, apenas da Mãe, a mãe ventre e a mãe metáfora. A mãe que nos salve disto tudo.

11.11.13

sede

Ainda penso em todos os homens que me perderam quando estavam, ou achavam que já estavam, muito perto de me ter. Durante a missa de hoje -- Evangelho da Samaritana -- pensei nos homens que quiseram muito ter-me, com ternura e animalidade. Mulheres também. Foram muitos e muitas os que quanto mais me quiseram, mais depressa me perderam. O Evangelho da Samaritana revela uma mensagem de sede. Descobrirei eu, algum dia, de que sede mais profunda padeço eu? O padre calou-se e logo o jorro de um grito na minha cabeça: "De que sede verdadeira sofro eu, meu Deus?"

9.11.13

derrotismo












Inside Llewyn Davis | 2013| Dir. irmãos Coen. / Saving Mr. Banks |2013| Dir. John Lee Hancock. No primeiro, a desolação do artista e do homem, que é sempre sustentável e muito bela (mas só) do lado de lá da grande tela. Direi mais, a resignação do homem e do artista à sua própria desolação. No segundo, talvez o papel mais difícil de se desempenhar, quer na vida, quer na grande tela: o da mulher que finge implacabilidade contra a sua invencível desolação. Do lado de lá da tela, o projecto da dor que se projecta no meu prazer imaginário; do lado de cá da grande tela, têm em comum, ela e ele, a ineficiência do projecto artístico e humano, ou seja, apenas o meu próprio e real derrotismo.

7.11.13

peregrina

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent
Pour partir; coeurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,
Et sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

C. Baudelaire | Les fleurs du mal

5.11.13

ela escreveu


















"Je ne crois à rien et un peu à personne comme je doute de ma vie." Como se tivesse sido eu a escrevê-lo.

3.11.13

não-lugar

Tento entrar num site para ouvir uma estação de rádio. O linque encaminha-me para o seguinte dizer: "Desculpe, mas tentou chegar a algum sítio que não existe, ainda". Rio-me particularmente do "algum" e mais ainda do "ainda", e rio-me com uma determinada pena de mim mesma (aliás, muita pena). Na verdade, há anos que não tenho tentado chegar a quaisquer sítios certos; ora, há anos que, simplesmente, tento chegar pelo menos a 'algum' sítio. Não me admiraria, por conseguinte, que o linque, de repente, me encaminhasse para o estado de mim mesma, o lugar que não existe (ainda, dizem eles).

1.11.13

nebraska



















Um filme muito bonito, suficientemente duro, paternalmente muito importante, filialmente ainda mais importante. Já o lugar da mãe é, como quase sempre, essencial e fracturante. 

Nebraska | Dir. Alexander Payne | 2013