31.5.13

espaço|corpo

1566.78, número a número, a distância visível do coração de Portugal ao coração da Suíça. Depois, há a outra ou as outras distâncias. Aqui ou lá, a distância - que significa ponte, espaço, tempo - é o meu corpo a emergir cada vez mais concreto da minha ausência em toda a parte, tão concreto quanto uma variz na perna ou um fio de cabelo branco.

28.5.13

alone





























[George Brassaï. Prostituta. Paris. c.1932]

s/t

Gosto tanto de homens. Gosto tanto de mulheres. Quer dizer, não é que goste de homens e de mulheres, o que eu gosto é da ideia de que gostaria que fosse possível gostar de gente. Colijo-os um a um, uma ocupação como outra qualquer. Saio à rua e tento, nas filas, nos cafés, no supermercado, nos transportes públicos, no jardim, tento observar detalhadamente o rosto de todos, mas nunca sou capaz de o fazer. Olho de través, sinto medo de que percebam que estou a tentar levá-los para casa, sinto medo de que percebam que os quero levar para dentro do meu ensimesmamento, essa vitrine tão vazia e tão heterogénea.

26.5.13

modigliani [III]





























Clarice Lispector, em entrevista arquivada, disse: «Eu não sou solitária, não, eu tenho muitos amigos. E só estou triste, hoje, porque estou cansada; em geral, sou alegre». Foi o rosto de Clarice Lispector, afiado como uma faca, que proferiu estas palavras. Depois, deitou os olhos ao chão e ficou ali, em grande silêncio, a esconder muito mal o isolamento profundo das mulheres afiadas, sós e tristíssimas de Modigliani.

25.5.13

modigliani [II]

Amedeo Modigliani morreu, muito pobre, com 35 anos. No dia a seguir à sua morte, a mulher dele, Jeanne Hébuterne, grávida de 9 meses do segundo filho de ambos, mulher de olhar firme, aquele olhar que rasga de baixo para cima a linha do horizonte, atira-se para a morte de um quinto andar. Tinha 21 anos. Viveram tudo o que tinham para viver; num certo prisma, alcançaram cedo a maturidade de viver uma morte muito velha.

tanta gente|mariana

- Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me... Que parvoíce, não é? Estou agora só.
[...]
- Também deste por isso - disse brandamente. - Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze... Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança.

CARVALHO, Maria Judite de, 2010, Tanta gente, Mariana, Lisboa, ed. Ulisseia (Babel), p.20.

modigliani

Inúmeros os exemplos de mulheres poderosas que habitam no seu próprio olhar, nunca ou raramente tendo saído dele na direcção das coisas visíveis do mundo. Estou-me a lembrar de algumas destas mulheres que, por medo de me esquecer de apenas uma que fosse, e pudor de não ser capaz de as sublimar como merecem, não me atrevo a nomear numa só frase. Estas mulheres são como o lume brando que levamos no corpo da lareira até à cama fria. Vão emergindo da nossa boca e das nossas mãos aos poucos, como os goles de bom vinho saboreados lentamente. Todas habitam nos seus próprios olhos protegidos, na maioria dos casos, por um sobrolho determinado e pálpebras que nos lembram, semideitadas, a Aurora de mármore de Michelangelo Buonarroti. Esta tarde dei início, pela primeira vez, à leitura de uma destas mulheres. As mulheres mais poderosas que eu conheço choram por dentro para ainda mais dentro. À 36ª página de Tanta Gente, Mariana, já eu chorava para fora sobre a minha gata preta. Tenho o sobrolho cansado (que muitos confundem com determinação), tenho as pálpebras negras e ensimesmadas, feitas de papel frágil (que muitos confundem com segredo e intimidade profundos), habito demasiadas vezes fora da escuridão macia dos meus olhos, genuflicto a estas mulheres que me fazem chorar com visibilidade; ao contrário destas mulheres completas, inteiras, como estátuas vivas de mármore esculpidas para sempre, sou uma mulher fraca, mortalmente para sempre.

taki




























 [Raymond Chandler com o Taki]